Alberto Lobo ou "Jinse" foi um importante amigo de nossa Casa nos idos dos anos 70/80.
Devemos a ele a apresentação de Iya Pitiká a nossa Iyalorixá Elzira.
Encontrei esse texto que acredito ser interessante para traçar um perfil de Seu Jinse.
"JINSE! AVISE A TODOS QUE DONANA HOJE ESTÁ COM SEU "CASACA DE FERRO".
E lá descia o menino Alberto pela ladeira do terreiro para avisar que a Iyá (Aninha) acordara com ares de poucos amigos e que todos tratassem de andar na linha durante aquele dia. "Seu Casaca de Ferro" era como chamavam nesses dias a Ogum, Orixá da guerra e de irascível humor, a cuja companhia era atribuída as fases de reclamações e cobranças exigentes feita pela Iyá, em seus dias de pouca paciência.
ALBERTO JOSÉ LOBO – Pai Alberto, Jinse – Ilê Axé Opô Afonjá – Coelho da Rocha, RJ – 1978 a 1991.
“Ô ioiô, me deixa morrer vestido porque defunto nu é muito feio”!
Desse modo, Pai Alberto respondia a todos – e eram muitos – que
tentavam convencê-lo a doar ou deixar de herança os lindos fios de conta
que usava em dias de grandes festas no terreiro. Ele havia construído,
adquirido, sido presenteado ou herdado, na sua longa vida dentro dos
candomblés, belíssimos fios de conta que enfeitava, não raro, com alguma
figa, berloque ou oxê de ouro.
Mas, gostava de dizer que queria ser
enterrado com um fio simples de contas brancas, ficando as mais
elaboradas para serem guardadas e expostas em um Museu ou algo assim. Um
de seus fios de conta, dizia ele, adquiriu de um velho africano, depois
de uma negociação que durou meses. Evidentemente, essas declarações,
aliadas a beleza
dos fios, aguçavam a vontade de todos e aumentavam o número dos pedidos.
Segundo ele mesmo, havia nascido em Cruz das Almas, na Bahia, no ano de
1915, filho de um pai que era tropeiro e de uma mãe que ele conheceu
muito pouco.
Com cerca de nove anos, perambulava pelas ruas de
Salvador, dormia de favor na casa de uma aparentada distante e passava o
dia ajudando na Igreja da Barroquinha, onde sempre havia algum trocado
para ganhar ou, pelo menos, algo para comer junto com o sacristão e os
padres.
Na Igreja, ajudando nos preparativos da procissão do Senhor
Morto, em 1925, ele conheceu Dona Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá que,
vendo a condição de necessidade
daquele menino, participou como
madrinha de seu batismo e o levou para morar com ela no alto de São
Gonçalo do Retiro e na sua casa da cidade, no Rio Vermelho.
Logo,
ele aprendeu a coisa mais importante do candomblé: guardar segredos e,
com isso, sua utilidade ficou definida. Ele passou a ser usado como
mensageiro em todas as vezes que a Iyá precisava mandar algum recado
mais reservado a alguém. Foi nomeado como Jinse, o mensageiro. Ela o
mandava ir a todos os lados e ele passou a acompanhá-la sempre que ela
saía. Logo ganhou o apelido de “branco de Aninha”, pelos mercados de
toda a Salvador negra daquela década de 1920.
Na segunda metade da
década de 1920, depois do famoso jogo de 1927, no qual Dona Aninha
recebeu uma ordem de Xangô para se afastar do terreiro e da cidade até
receber chamado para retornar, ele partiu, juntamente com sua protetora,
para o Rio de Janeiro. Lá ele procurou e encontrou seu único irmão
consangüíneo, mais velho e
que havia se transferido para a cidade.
Os pais eram já falecidos e o irmão lhe ofereceu um trabalho se ele
quisesse ir morar com ele.
Pai Alberto preferiu continuar a morar na casa de sua Iyá, juntamente com Helena Moura, uma abiã e Edgar Brandão,142
um Ogã que também fora levado para o terreiro de São Gonçalo do Retiro
ainda criança. Ele ajudava nas tarefas que ela ordenava e a acompanhava
por toda a cidade, fosse pelas matas para “catar folhas”, fosse para
alguma visita importante, uma missa na igreja ou simplesmente para ir
reuniões das Irmandades católicas das quais ela se tornara sócia, um
costume que ele acabou por herdar. Ele participou do grupo que estava na
fundação do Ilê do Rio de Janeiro, ocorrida antes do retorno a
Salvador.
A presença de Edgar Brandão no grupo que veio de Salvador com Dona Aninha é confirmada por suas
filhas, Maria Brandão e Lia Brandão, integrantes da Comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá, no Rio de Janeiro.
Em 1935, ele voltou a Salvador acompanhando Dona Aninha e continuou
prestando serviços. Ele pegava as folhas rituais, era encarregado das
compras de animais, ajudava no descarrego de oferendas nas matas, rios e
praias, e eventualmente ajudava no sacrifício de animais. Além disso,
continuava a ser detentor da confiança da Iyá quando esta queria manter o
segredo sobre algum assunto e mandar recados às pessoas.
Nessa
época, já com seus 19 para 20 anos, recebeu o cargo de Otun Asogbá, o
assessor da mão direita do Asogbá, o principal posto da casa de Omulu.
Juntamente com
o Asogbá Deoscorédes dos Santos, o Mestre Didi e sob o
comando de sua Iyá, participou das cerimônias funerárias de muitas
pessoas ligadas ao Ilê, todas falecidas enquanto Dona Aninha permanecera
no Rio de Janeiro. Havia uma “lata de 20” cheia de otás. Todas
esperando o descanso! Foi uma trabalheira, lembrava.
Ele se
recordava que, quando menino, “antes de 27”, levava os recados
acompanhados de um obi ou orogbo, que era entregue ao destinatário
envolto em um pano branco, significando que era um recado de cunho
espiritual e, na maioria das vezes, pessoal. Só deveriam ser discutidos
pessoalmente entre a Iyá e o destinatário.
Jamais guardou lembrança
de algum recado importante; depois de transmiti-los esquecia o assunto
imediatamente. Mas lembrava com nitidez de alguns fatos que o
marcaram nessas andanças, como o de ter sido enviado em uma pequena
viagem até Sergipe, para convocar ao terreiro um filho de santo que
Xangô mandara chamar e do
qual aguardou o comparecimento por três dias.
Quando havia convites para as grandes festas do terreiro, seu trabalho
de correio dobrava, pois que as pessoas mais importantes recebiam o
comunicado acompanhado de um bolo, um manjar ou um acarajé.
Por
vezes, ele tinha que sair sobraçando um balaio carregado e não esquecer
do que pertencia a cada um. Ele ria muito ao lembrar de algumas
confusões que fez com
este tipo de recado e de como algumas pessoas
receberam seus convites sem a respectiva guloseima, por ele ter comido
no meio do caminho. Quando estas traquinagens eram contadas, ele sempre
dizia que era tudo fruto da “vontade de seus parentes”, os gêmeos
míticos Ibeji, aos quais sua cabeça era devotada.
Pai Alberto voltou
ao Rio de Janeiro logo que Dona Aninha faleceu em janeiro de 1938. Em
maio daquele ano, ele veio procurar seu irmão biológico, com quem tinha
feito contato na viagem anterior e que tinha lhe prometido um trabalho,
se ele quisesse voltar. O irmão manteve a promessa e arranjou um
emprego para ele junto a oficina de
um ourives, na Rua Camerino, onde ele trabalhou por uns cinco anos e se apaixonou pela beleza do ouro.
Logo depois, através de um político que Dona Aninha ajudara
anteriormente, ele conseguiu uma colocação no Ministério do Trabalho.
Lá, ele exerceu a função de
identificação digital das pessoas que
tiravam a Carteira de Trabalho, até a sua aposentadoria, em 1985. No Ilê
Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro, seus inúmeros afilhados e aprendizes
brincavam dizendo que ele já tinha “fichado” quase toda a população da
cidade.
Juntando sua paciência com uma enorme capacidade de entender
as necessidades alheias, ele acostumou-se a visitar semanalmente
algumas pessoas, entre irmãos do terreiro e das irmandades católicas e
prestar a eles serviços espirituais como rezas, limpezas espirituais com
ervas e a recomendar banhos de ervas a todos. Não admitia que alguém
não fosse batizado na igreja e cobrava dos pais sempre que encontrava
uma situação de, como ele chamava, “menino pagão”.
Com essa
mania, espalhou uma rede invejável de afilhados pelo Rio de Janeiro. No
terreiro, dizia-se brincando, que ele andou “fazendo o santo” até dos
padres de Santo Elesbão e Santa Ifigênia e também de Santa Luzia,
Irmandades nas quais era irmão atuante.
Organizou, ainda na década
de 1960, uma missa mensal para homenagear Nossa Senhora das Candeias, a
que ele chamava de Oxun, que atraía centenas de fieis do candomblé e da
igreja católica. As pessoas costumavam fazer promessas à Santa, para
serem pagas com comparecimento continuado à missa. As missas ainda hoje
são realizadas em toda primeira quarta-feira de cada mês, na Igreja de
Santo Elesbão e Santa Ifigênia, na Rua da Alfândega, no centro do Rio de
Janeiro.
Pelo menos uma vez por quinzena, chamava alguns escolhidos
para acompanhá-lo na coleta de folhas rituais para alguma atividade do
terreiro. Eram longas
caminhadas que podiam durar todo o dia e
nestas ocasiões, tal como tinha feito sua Iyá com ele, transmitia os
conhecimentos dos costumes e das aventuras mitológicas de cada um dos
Orixás. A cada folha pesquisada e colhida, fazia com que ficasse marcado
na memória o local e o motivo do recolhimento, através da narração de
uma história
fantástica ou de um caso mais corriqueiro que lembrasse.
Em cada dia 8 de dezembro, ele vestia sua roupa mais elegante, terno e gravata,
ia até o serviço de cofres de aluguel da seguradora Sul-América, na Rua
do Ouvidor e retirava um prendedor de gravatas e um ou dois dos anéis
de ouro que colecionou ao
longo da vida – costumava dizer que tinha
dez, um para cada dedo - e desse modo paramentado, partia para assistir
pelo menos a três missas em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, que
ele também tratava como Oxun.
Pai Alberto era uma pessoa de
grande alegria, mas o que mais impressionava a todos era sua humildade e
como o seu modo de ser se impunha naturalmente, sem nunca
ser necessário que abandonasse o sorriso ou a calma.
Seus ensinamentos eram sempre transmitidos como se fossem pedidos
educados: Ô ioiô, por favor, quando for colocar alguma oferenda,
verifique se passa alguém por perto. Às vezes, isso indica a presença de
algum dos nossos parentes.
Mesmo quando a observação deveria ser
uma ordem, ele a transformava em pedido. Se a folha for para o velho,
você pode pegar com o sol alto. Mas para os outros, não, eles
podem
se aborrecer e não aceitar. Só não gosto de ensinar a essa gente que
quer vender a folha, Ossain não gosta. Se Ossain se aborrece, as folhas
vão sumir. Está bem?
Era um professor detalhista, que gostava de
enfatizar os motivos, para depois mostrar como se fazia. Seus alunos,
por vezes, lembravam dos motivos de executar um
ato, sem lembrarem exatamente do ato.
Pai Alberto faleceu em 07 de agosto de 1991, de uma infecção pulmonar que havia contraído em início de junho do mesmo ano.
O POMBO DE OSSAAYIN
Por volta de 1975, Pai Alberto era o braço direito de Dona Cantulina no
Ilê Opô Afonjá de Coelho da Rocha. Ele e Dona Helena Moura eram pessoas
do convívio diário da velha e saudosa Iyá. Dona Helena morava em um
quarto, dentro do Ilê e Dona Cantulina, em uma casa que ficava ao lado
do terreiro, mas que era de sua propriedade.
Pai Alberto, quando não
era necessário que ficasse no terreiro para alguma obrigação,morava num
quarto do apartamento alugado por seu irmão mais velho, no bairro de
Maria da Graça, no Rio de Janeiro.
Dona Cantulina estava com 75 anos de idade nesta época, Pai Alberto, de
quem todos diziam que escondia a idade, dizia sempre ter 60 e poucos
anos e Dona Helena confessava seus 70 anos, sem nenhuma contestação dos
mais antigos. Há mais de 35 anos,
Pai Alberto ia até Coelho da
Rocha toda quarta-feira ao final da tarde, para ajudar a colocar o amalá
nos pés de Xangô. Nessas visitas, ele recebia as orientações da Iyá
sobre o que o terreiro precisaria para os dias seguintes e saía de lá
para executar o que fosse necessário e estivesse ao seu alcance.
Sua
cabeça era dedicada a Ibeji, os gêmeos míticos, consideradas as
crianças do candomblé e que, geralmente, são apresentados como
irrequietos e traquinas.
Pai Alberto não negava sua filiação. Sempre
lhe acontecia ou, como ele dizia, seus parentes (os gêmeos) faziam
acontecer, coisas inusitadas; como se alguma criança dirigisse impusesse
uma vontade por cima dos eventos da vida real.
Muitas vezes,
ganhava presentes sem pedir ou por apenas insinuar que algo era bonito.
Quando queria alguma coisa, acabava por consegui-la. Era especialmente
ligado
a Oxun e a Omulu e chegara mesmo a providenciar, para manter o
brilho das festas dedicadas a eles, uma caderneta de poupança para cada
um, na qual acumulava com
dedicação as poucas sobras do parco salário de funcionário que recebia.
No início do Governo Collor ficou decepcionado com a retenção dessas
suas parcas economias que, de resto, nunca conseguiu recuperar.
Aos
sábados, ou quando era necessário, ele convocava alguns de seus
aprendizes para irem “catar folhas” para as cerimônias. Dessa forma,
ensinou a algumas dezenas de adeptos, não só de sua casa de culto, mas
também de outras casas da comunidade: andando com ele pelo Alto da Boa
Vista, na Floresta da Tijuca, e por todos os lados onde havia andado
anteriormente com Iyá Aninha.
Quando havia necessidade grande
transporte, ele conseguia a ajuda necessária levando algum aprendiz às
compras dos animais dos sacrifícios e para participar de
algumas de
suas funções, para aprender e, segundo ele, porque “uma mão lava a
outra” e poderia algum dia precisar ensinar a alguém.
Sempre
conversava muito sobre as histórias do candomblé e principalmente sobre a
do Ilê. E ele tinha muitas histórias que dariam um livro. Além das
folhas rituais,
Ele era profundo conhecedor de mitos dos orixás,
além de saber a localização de todo tipo de lojas – do que quer que
fosse – e, principalmente, das igrejas, no Rio de Janeiro
ou de Salvador. Parecia ter estado sempre andando pelas cidades e parecia conhecer todo mundo.
Certo final de tarde de uma sexta-feira, subia em direção ao Ilê para
um Olubajé que começaria naquela madrugada e iria até a festa da noite
do sábado. Levava as folhas que tinha colhido pela manhã e, aproveitou
uma carona, para passar por um aviário que ficava no caminho. Ele queria
comprar um galo para oferecer em nome de um amigo que estava doente.
Escolheu com cuidado e mandou embrulhar o animal, não sem antes regatear
muito o preço. Como sempre, o dono da loja cedeu à vontade misteriosa
dos gêmeos e fez o desconto.
Antes de sair, Pai Alberto se encantou
com a beleza de um pombo que tinha as penas de um cinza meio esverdeado e
finalmente lembrou de comprá-lo para oferecer a Ossaiyn, o Dono das
folhas, de quem ele era auxiliar e devedor. Mas, depois de negociar o
desconto que sempre acabava por obter, Pai Alberto só queria levar o
pombo para dali a quinze dias e se ofereceu para pagá-lo na hora, desde
que o mantivessem lá na gaiola até o final de semana determinado.
O
dono da loja, já ansioso para fechá-la, querendo se livrar da obrigação
do desconto já acertado, resolveu desembaraçar-se logo do negócio.
Imediatamente,
inventou uma nova regra incompreensível no mercado:
só poderia vender se o pombo fosse levado de uma vez. Ele não poderia
guardá-lo, mesmo fosse pago com
antecedência. Pai Alberto resolveu deixar o pombo de lado e, agradecendo por tudo, foi saindo porta a fora.
Quinze dias depois, no sábado de manhã cedo, ele saiu direto para a
loja na esperança de ainda achar o pombo de Ossaiyn, antes de ir para
Coelho da Rocha. Ao entrar, percebeu algo estranho no ar e, depois de
observar um pouco, notou que as imensas gaiolas do aviário estavam todas
vazias. Era algo inusitado! Só havia uma
gaiola com ave. Na realidade, só havia o pombo esverdeado na loja. Nenhuma criação a mais. Tudo vazio!
Ele comprou sem regatear muito e o vendedor, na ausência do dono da
loja, sem ser perguntado, foi logo informando. Só sobrou ele! Deu uma
doença a semana
passada e matou todas as aves que havia. Um enorme prejuízo! Pai Alberto pagou,
pegou seu embrulho e saindo da loja, comentou para o acompanhante, sorrindo: Quem mandou fazer regra só para Ibeji?"
Gonçalo Santa Cruz de Souza.
Tese de Doutoramento.
A casa de Airá